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quinta-feira, 29 de abril de 2010

os primeiros aromas das férias



Tal e qual como os sentidos iniciais da árvore de natal e toda a envolvente de mistérios à precedidos, o mesmo acontecia com as maias e todos os enebriantes arômas que nos "assaltavam" fazendo-nos pensar nas ondas, no mar e nos passeios como se tudo fossem fáceis caminhadas. Os transportes eram escassos, embora as procuras não existissem para o aluguer de casas. Olhavam-nos como que a medir uns volumes para caberem em qualquer espaço e saia uma frase de carácter casual: veja ali aquela, vá lá...se não gostar volte cá que depois falo-lhe de uma outra. Tal como ainda agora adoro ver casas e espaços interiores ligados aos movimentos e tarefas das pessoas. Naqueles lugares para onde íamos de férias, a luz eléctrica ainda não tinha chegado. A escolha não era vasta, mas acertava-se normalmente, com o sossego, com a horta e sobretudo com o sorriso das pessoas. Nessa altura pensava, se não conhecesse hoje, que os colchões eram edredons. Criavam um arco, como se fossem um báu, qualquer cofre repleto de surpresas sobre as camas lavadas,e depois quando nos deitávamos ia ao fundo. Eram vulgarmente às riscas de um pano sarjado e tinham um rasgo no meio, o qual vim a aprender que era para na manhã seguinte se espanejarem fazendo com que voltassem ao arco primordial solto e repleto. Soube também que aquelas palhas eram cantadas ao luar, nas eiras, lugares circulares de lages de pedra mármore onde se vivia a magia do encontro. As eiras podiam ser de maior ou menor diametro, consoante o que se desenvolvesse por lá, quanto à tarefa e ao gesto. Assim a comunidade tinha cada um a sua, mas pertença da utilidade e função do necessário desígnio.As palhas eram arrancadas às maçarocas do milho. E, se do milho nada se perdia, também as palhas iriam para os colchões. Um equipamente de ordem ergonómica e conomicista que a vanguarda deixou para trás. Aqueles momentos eram hilariantes de paz do céu sem deus e sem pecado. O céu era uma abóbada e as estrêlas e o milho apontamentos pequeninos com que se podia brincar. O instrumento vocal uníssono dava força à matéria transformadora e uma sensualidade crescente aquecia a lua, o grupo e o envolvimento em espiral sagrada que se elevava como o pombo correio que sempre ia connosco para que voltasse à nossa terra para contar da nossa boa chegada com a mensagem agarrada à anilha na pata.

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quarta-feira, 28 de abril de 2010

terça-feira, 27 de abril de 2010

No baile das máscaras




Talvez não seja exagerado falar dos fatos dos mascarados; fatos para festas e celebrações como já disse mas também muitos para pessoas que não os pagavam. Essas mascaradas de outros fatos e peles. Eram esses os momentos dolorosos onde entrava parte feminina e diplomática de minha mãe que cumpria em acto diplomático a fiabilidade e modo de pagamento adequado, mas deslocando-se com alguma discrição às portas ou portões das casas ou casarões, palácios quintas e quintais das pessoas. A minha inocência não abrangia o peso desta carga emocional, mas até hoje não me é indiferente a ousadia e indiferença com que os mesmos actos se praticam, desde os tempos mais remotos.
Algum escritor da nossa contemporaneidade, disse que os que devem ainda se zangam com os lesados, e que sempre assim será...
Talvez daí a injustiça dos que têm muito ficarem com tudo e os que nada têm perderem sempre.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

***My Desert Cottage

***My Desert Cottage

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2 situações

Carneiros atravessando em passagem de peões, num lugar de campo e carneiros pastando junto às colmeias de prédios na periferia da grande cidade.

Há poucos dias...


Rebanhos

Os carneiros continham e desenhavam as estreitas ruas e azinhagas. Era uma espécie de tapete de lã que enchia os estreitos caminhos exalando um especial perfume que para mim soube sempre à humanidade calorosa, mesmo às paisagens existindo para lá do horizonte tal como se iniciaram nas pinturas dos princípios do séc.XV-qualquer imaginário de pastagem, mesmo sabendo da nossa origem cientificamente estudada noutros lugares, uma paisagem de imensidão. E, enquanto eles se amontoavam, um pouco em desorientação, embora pastor e cão os conduzissem, deixavam incondicionalmente o rasto do odor e os dejectos orgânicos que me lembravam colares de viúvas. Gostava; gostava mais, do que ver de outro modo, mas na mesma passagem, e curiosidade de todos irmos às janelas debruçados sobre as cantarias de pedra que as enquadravam, para vermos os soldados que passavam também em fila e noutros sons, ritmados por vogais estrondosas e, quando nos Verões quentes, suados e exaustos, vestidos de cinzento, na ausência de cor e numa ordem que nunca me foi animadora. Iam também atrás de um "pastor"alguém que ordenava por sons guturais;quando chegavam aquela caminhada já tudo estava num final de desespero alienado e quase desmaiado. Senhoras da época, mulheres de palavra e misericórdia, umas de colares das perdas de maridos noutras guerras anteriores, davam-lhes de beber, enquanto eu apenas pensava em como eles gostariam de tomar um banho e despirem-se todos daquelas fardas de muitos pesos e lutas. Assim era a tropa.
Um mito, como misto de passagem de todos os tempos. Carneiros e homens eram dois conjuntos de unidade que povoavam em diferentes tempos e horas a minha infância em desenhos que pintavam os caminhos de cores serenas e tristes. Os primeiros de uma forma e os segundos de uma outra. Ambos me fizeram sempre pensar no filme que estávamos a ver há trinta e seis anos na noite de vinte e quatro de Abril: "Guerra e Paz". Tanto antes como depois sempre me disseram que «tinha de ser assim». Algumas, ou muitas das pessoas que desenham e pintam e realizam outras Artes têm dificuldade em perceber certas palavras e também certas armas. Preferem os rebanhos apenas de animais elegendo o animal, mas preferindo o Homem apenas como individuo uno e independente. É verdade como diz o Konrad Lorenz: que a agressividade nasce com o homem e este leva tempo a desenvencilhar-se dela; há os que nunca se conseguem libertar, essencialmente quando ela ainda lhes é desenvolvida, contrariamente ao afecto que se lhes deveria favorecer.Universos culturais e ganâncias poucos estruturadas na razão e no equilíbrio emocional.
Estou a lembrar-me disto porque ontem celebrou-se uma data. Em que se comemoraram anos (im)perceptíveis de várias acções e contendas. Talvez por tudo ter acontecido na Primavera, com as borboletas, com as joaninhas, pirilampos muitas e fortes vontades se perderam. Como disse o George Orwells no seu livro "O triunfo dos Porcos"-«todos os animais são iguais, mas há uns mais iguais do que outros»- e os porcos ganharam mesmo. E absorveram toda esta gama de insectos úteis aos homens e à civilização. Ainda há rebanhos. Os primeiros em outros lugares, os segundos mais sofisticados e subterrâneos, com diferentes tecnologias e métodos. Só pensava que a viagem à Lua, não fosse tão exorbitante. E fiquei contente de ver a primeira fotografia de um Sol que apenas as crianças souberam sempre pintar às cores ainda que as maioria das educadoras não lhes permitissem. Aqueles verdes e azuis encantaram-me.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

A máquina de projectar Cinema


Tal como havia no lugar onde nasci uma caixinha paralelepípedica com uma asa para se agarrar, com uma nossa senhora dentro, para abençoar e proteger os crentes de casa em casa, numa espécie de via-sacra passeando quer de noite quer de dia pela mão de um transportador, como caixeiro viajante, também meu pai e seus amigos artífices, tipógrafos e médicos tinham uma máquina de projectar filmes, alugada e dividida entre todos. Eram poucos filmes, em enormes bobines sem criados para os transportar, embora a máquina fosse pesada. Cada um, tinha durante um tempo direito a usa-la para a ter usufruindo-a com a família. Uma espécie de biblioteca itinerante. Nem tela especial ou tecnológica para os projectar. O lençol branco que alguém tinha de subir a cadeira para o esticar sobre o varão do cortinado era qualquer coisa de purificador e imaginário. Consolava-me o branco. Consolava-me a sala toda alterada para as crianças se sentarem como se passou a chamar "à chinês", nós já nos sentávamos de todas as maneiras e modos. Com o sossego de algo que teria um início. Tenho a certeza de ter visto o mesmo filme sempre que celebrava mais um ano de vida sempre em Novembro. Mês que a terra tudo acolhe no seu interior. Assim eram os filmes enquanto o clima lá fora is arrefecendo sem brandura. E, quando hoje explico as imagens que decorriam acerto com "A Quimera era de Ouro"do Charles Chaplin. Era um filme mudo. Ideal para crianças com poucas letras no seu código mental, ou cognitivo. Víamos todo o filme sem pipocas, também mudos ou rindo, rindo muito e como já contei, os presentes que se ofereciam não continham muitas riquezas ou maiores pretensões. O que guardo mesmo são as presenças, o afecto de partilharmos um dia diferente, com mais uns apontamentos do brilho dos bombons, como estrelas descidas à terra para uma mesa simples de toalha igual ao ecrã reinventado. Sim, a mesma canção, a eterna canção. O acréscimo da vela, grande alegria. Igual à oposta de hoje. O hilariante do desenvolvimento do crescer e ser mulher, ser grande e poder determinar uma vida in/determinada até hoje. Como um filme, como uma Quimera Dourada.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Viagens ao Porto da minha Infancia


Acontecia também irmos várias vezes ao Porto em viagem de família, visitar, outros tios e primos. Para mim o Porto, distinguia-se de Lisboa, quase como hoje distingo o Norte com o Sul da Europa. Falava-se nitidamente outra língua, a qual me seria fácil seguir, mas nunca me explicaram se seria ou não respeitoso fazê-lo. Para mim, no Porto chovia sempre. Uma chuva cinzenta, mas limpa. O Porto tinha uma escuridão de pedra e de fortaleza de granito. As pessoas eram semelhantes àquele fosso entre as margens, onde o Douro, passava e onde nós sempre sobre ele o fazíamos na ponte de D.Luís. Para lá chegarmos era comum dormirmos em Coimbra, onde não havia familiares, mas para mim toda a viagem era contagiante de alegrias e sabores dos diferentes percursos e cores.Para o Norte tudo se tornava "verdete" como os cobres que se tinham de limpar e tanta confusão me fazia. Sempre gostei das cores azuis e verdes. Tal como em Lisboa,por vezes dormia com a minha tia, no Porto era mesmo obrigatório dormir com uma prima minha. Dela apenas guardo uma imagem visual,muito carinhosa. Essa seria mesmo uma princesa, tal e qual a da Santa Brigída da Suécia; a primeira da Era Medieval; de longos cabelos louros e olhos azuis. A preferência com que todos os homens se seguraram como mito. Bem que para mim, dormir nos dias de chuva torrencial rodeada de pedras negras com uma princesa tão clara, era tão romântico como mágico. Talvez os homens pensem assim também e tenham medo ainda do escuro. Por isso as mulheres andam sempre a pintar o cabelo de louro!? A casa de família situava-se junto à Avenida dos Aliados com a Torre dos Clérigos,lá em cima, um Gótico ao Céu. Lá todos os sinos que tocavam e o Bulhão era para mim ir à China. Para chegar à casa de meus tios subia-se um terceiro andar até uma cúpula de vidro, segura por uma armação em forma de tarântula que agarrava a vidraça, onde caiam sempre as águas torrenciais e de onde se via o céu. Uma espécie de observatório. Aí a minha Tia dispunha à volta do varandim interior, flores; flores felizes naquela ambiência circular. Onde também gostava de fazer círculos agarrada à varanda onde se olhássemos para baixo se via uma espiral. Era caloroso dormir com a minha prima, com a certeza de que ela me iria contar mais histórias. Nem que fossem sobre os pingos que caiam nos vidros. Antigamente não havia o hábito de fechar tão hermeticamente as janelas de certas casas, porque os medos também eram pertença de outras histórias...

A Noite e o Conto


Tinha uma Tia com olhar datado. Olhos enormes e verdes. Olhos que riam, cantavam,dançavam e choravam
Apenas ela me sabia tirar os dolorosos e primeiros sintomas das dores de ouvidos. Os Irmãos Grimm, eram qualquer anonimato das histórias dos moleiros e farinhas e sacas. Sempre também a trilogia. A fuga e o encontro.Também gostava de ouvir:
espinhos de rosas, fadas iluminadas de brilhantes e varinhas de condão, as rãs transformadoras e tudo quanto representava universos protectores que nos seguravam ao destino da promessa futura. Nada mais do que a esperança.Porém esta minha Tia tinha uma diferente noção do Conto e da magia. E o seu plano de leitura teria talvez um mais ousado projecto onde tudo era ainda mais colorido, mesmo que todas as cabras fossem malhadas de preto e branco, ou todas pretas e todas brancas. Porque eram animais que ela sabia contá-los com coração; que batia e nos tocava. Nas noites de Inverno onde o nosso grande medo é maior por frágeis e delicados como a flora que as próprias cabras devoram., ela segurava-me os medos, mesmo sem ser de mão dada. Era um calor igual ao do pêlo dos animais. Penso que nunca tive "peluches" ; apenas família.,e lugares de estar e viver.Nunca me apercebi se ela dormia comigo...até ao dia amanhecer. Ou se eu, naquele acolhimento caloroso ia adormecendo em caminhadas vertiginosas nos trilhos e atalhos de saltos divertidos iguais aos cabritos? Adormecendo devagarinho com as cabras, naqueles redis ao relento, vendo as estrelas, cercada do calor da lã. Sei do consolo em como estes dias voltam sentidos quando nas noites das grandes chuvas e trovoadas me tocam nos vidros os pingos grossos e a violenta sonoridade dos trovões.

terça-feira, 20 de abril de 2010

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Uma figura muito portuguesa

Ainda naquela ambiência de trabalho da Oficina de trabalho de meu pai que era de portas abertas passavam pessoas, pessoas que queriam dialogar, pessoas que pediam, e pessoas que iam de facto tratar do negócio de cobrir a sua pele.Todos os géneros do Ser e do Estar, que pacientemente se tem de aceitar, quando se abre uma porta.
Todas as semanas aparecia uma senhora tão terna e idosa, como pequenina. Aquilo parecia um acto mecânico, gesto impossível de não ser feito.
O que em ciências da biologia se chama filogénese. O hábito, aquilo que mecânicamente fazemos já sem querermos.
A senhora pedia no acto de pedir, semanalmente e meu pai dava-lhos igualmente no mesmo gesto repetido, depois dela pedir no mesmo tom e som: "Sr. ...zinho, não dá uma esmolinha à velhinha?" Depois dele lhe dar as moedas dos vinte e cinco tostões, ela sempre dizia: "Obrigada sr....zinho, Deus Lhe aumente o que lhe fica. E Deus Lhe Dê muito que dar". Frase que ficou como herança de família.
Daquelas de grande e poderosa riqueza. O que se pode ter.

O Padre do Instituto de Santa Madalena

Um dia de Inverno apareceu um padre na alfaiataria de meu pai a perguntar se era ele o sr...e, perguntou-lhe o nome? Meu pai anuindo perguntou o que desejava?
-Preciso que o sr. me faça uma batina. Meu pai respondeu que nunca tinha feito nenhuma, mas se o sr me arranjar o modelo eu faço. À tarde apareceu o padre com o dito modelo que era muito interessante com mais de vinte botões pequenos à frente. Meu pai mirou e remirou a batina e conseguiu cortá-la com os tais poderosos e misteriosos instrumentos de trabalho. Depois de cortada embrulhou-a em rolo com uma fita do mesmo tecido preto. Chamou então uma minha tia , muito habilidosa nestas artes e disse-lhe:-toma, sem mais nem menos. Ela certa e confiante na sua sabedoria cumpriu rigorosamente até ao extremo final. Numa semana o trabalho ficou pronto.
Meu pai nunca chamou nem "irmão",nem irmãs a pessoas destas comunidades católicas. Foi com dificuldade que sempre escusei e omiti também esta norma. Considerava igualmente que os predicados que antecedem os nomes tais como sr.dr.,sr.engº,sr.arquitº,eram desiguais. Ter-se-ia de instituir também sr. sapateiro, sr. barbeiro, sr pintor, sr. carpinteiro e por aí adiante. Sempre pensei que ele era um homem justo e queria igualdade. Uma igualdade que nunca vi praticada em nenhum lugar e isto era divertido para o meu pensamento.
E gostaria de ver.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

O V e r s o

O Verso, segundo me ensinaram é o acto de virar, voltar, passar para o outro lado, virar a terra-cavar, lavrar. Palavra com raiz no latim. Vira para a outra linha, para que o verso aconteça.
Na Oficina de meu pai, não havia piano. Mas, também havia o verso e o reverso; o espelho grande e o sofá eram suficientes para as músicas que ouvia e também dois candeeiros em porcelana brancos, pendurados nas respectivas roldanas, por onde passavam os fios e num dos quais havia um peso em forma ogival que continha areia e equilibrava o prato coador ,protector de luz em forma cónica,com projecção semelhante a uma tenda,ou a chapéu de palhaço rico. A meia luz que interessava ao trabalho abaixo do olhar sobre as duas grandes mesas.Luz que filtrava a poeira dos dias,a poalha da intensidade do labor. Uma luz que para mim era diferente de todas as outras luzes, porque transmitia o vapor dos barcos, dos comboios e de todas as viagens de tanta gente que por ali passava, outros objectos pertenciam também àquele concerto de acolhimentos e projectos imaginários futuros.Mas as réguas e os esquadros enormes eram um fascínio que determinava já futuros inimagináveis.
E, magia das magias era o facto de se virarem os fatos. Virar como o verso.Os clientes que gostavam de um certo fato iam virá-lo. Virar um fato era virá-lo do avesso. Mas como o avesso tinha muitas costuras e pó nos interstícios havia as lâminas ou os canivetes para os limpar nessas rugas vincadas pelo passar a ferro. O que era uma paz de ver. Depois a lavagem, e posteriormente o engomar e reparar o outro lado do pano, tecido, ou o que quer que fosse. Penso agora, que como isto acontecia com qualquer classe social, esta questão devia dizer respeito mais à pele, ao gosto ergonómico e talvez, fantasiemos a algum equilíbrio ecológico e economicista. O fato após reabilitado, parecia as casas quando de novo se pintam e de novo nos refrescam a alma. Esta história foi-se diluindo ao longo dos tempos como qualquer acto impossível. Nessa mesma época já se ouvia dizer que na América, se calçavam as meias e deitavam fora depois de rôtas. A palavra "passajar" não sei sei se ainda existe. Mas era um tear muito pequenino que apreciava e resultava. Cerzir, era então ainda pior,(ou melhor, mais precioso).
Cerzideira era uma mulher (penso que não existiam homens, para tal)que disfarçava qualquer "tragédia" num bom tecido;como quem diz:"no melhor pano cai a nódoa". Naquela Oficina passavam-se muitas histórias engraçadas, e era um lugar onde me sentia bem. Se lá iam estrangeiros, meu pai dizia sempre que eles tinham outro cheiro; e sempre quis decifrar este enigma. Sim, as senhoras gostavam muito dos fatos (tailleurs)lá concepcionádos; davam-lhe elegancia e eu não só gostava de as ver como também da diferente cerimónia da prova do fato, que tinha uma intimidade diferente.Dos cheiros contarei um dia. De seguida terei de contar as viagens dos pirilampos...

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Passamentos

Talvez seja a chuva e o exalar da terra que nos faça remexer tanto nos nossos mortos, nos trilhos dos seus ossos feitos, desfeitos, vividos e mortos quantas vezes por nós naqueles dias dos seus últimos tempos connosco. Os quais enquanto vivos nos deram a mão para nos levantar da terra. Talvez seja a intensidade das raízes que lhes estão juntas e com elas também podemos conversar. Este desabar das terras com as intempéries, uma força conjunta ,a um concerto de desconsertada unidade, injúrias mistas ,e flores silvestres que nos apelam à paz, à vida e à morte. A entropia, a ordem e o caos. Uma cloaca humana.
Vestir e despir tantas vezes na vida. Que sofrimento o da Tarântula. Meu pai sabia-o e, colocava-se muitas vezes a olhar o mar à frente de tudo, esquecendo em certos dias tanta gente que vestia.

vestir e despir

Meu pai fazia fatos para todo o tipo de pessoas. Para mim, os mais bonitos eram os executados para o primo Aurélio. Porque eram brancos, de uma alvura e modo sintético, como agora se chamaria puro design. Claro que tinham o desígnio do mar, do azul marítimo e, com os botões dourados, que também eram de ouro puro para mim, tudo aquilo seria um reino de fadas. Na alfaiataria havia um espelho-um enorme espelho da dimensão das pessoas, onde elas se apreciavam. Olhava para elas duas sentada no sofá. Para a pessoa e para ela no espelho mirando-se e remirando-se, às voltas e reviravoltas. Meu pai pacientemente juntava alfinetes e mais alfinetes nas rugas e pregas, unindo ou abrindo espaços, perguntando como se sentia?! Como se aquilo fosse uma cirurgia epidérmica.Ou uma escultura. Sentia o gosto e a ternura de meu pai a juntar e a rasgar as peças alinhavadas. Adorava os alinhavos que faziam espinhas ou traços diversos. Princípios de desenhos que gostava de fazer nas tábuas juntas ao colo que as costureiras sentadas em banquinhos baixos me cediam. Tal como as pranchetas. Meu pai dava-me as folhas de calendários que lhe enviavam; propaganda de bons tecidos estrangeiros. Calendários de lugares na época longuíssimos para mim. Espanha era onde íamos mais longe. E se era...Desenhava na parte detrás e as folhas eram de papel couchè.
No fundo era; um modo de cobrir a pele. Uma plasticidade sobre outra. Os fatos eram produzidos de vários materiais na gama dos tecidos, algodão, lã, angorà, nomes de referencia a outros, como pelo de camelo, para sobretudos e linho para o Verão. Havia fatos para todas as estações do ano e como quem diz, para todas as estações de pessoas. Eu adora, depois dos fatos brancos do meu primo Aurélio, os fatos do Pai Natal e os fatos dos palhaços.

Mas um dia apareceu lá um senhor com um ar sério e triste, e ainda vivo. Muito evasivo sobre o que queria, com uma timidez na palavra e muitas hesitações. Meu pai não era pessoa de ter face dura ou inquisidora, agressiva ou confusa. Hoje como se me esvai muito da realidade de tudo quase que me apetecia dizer que meu pai não tinha cara, tinha espaço e abertura dentro de si e da sua comunicação silenciosa e amável. Daí o senhor ter colocado na mesa, aquela dificílima questão quase em surdina:-" sabe? queria um fato para levar no meu caixão...". Escolheram, apalparam tecidos, cores, padrões. Nada é apropriado para um morto. Naquela altura ainda não havia os cultos. Ou por outra, já o Egipto ia há milhares de anos, centenas de séculos. Não convinha ser uma cor brilhante ou clara. Ele próprio iria vestido do seu próprio luto. Este homem como outras figuras seguiram-me toda a vida, com aliás todo o ambiente que ali vivi com meu pai e todas as pessoas que com ele trabalhavam, mas disso irei falando aos poucos, como das tesouras que não conseguia pegar e que deveriam ser do tamanho do meu braço. Todos os instrumentos me eram respeitosamente sérios e me criavam uma curiosidade quase museológica. Porque tudo era transformador e vivido numa escala de utilidade e vigor construtivo com saber e delicadeza. Cada cliente era atendido de igual forma, coisa que ao longo dos tempos fui sentido saudades. Havia os que se tinha de ir às suas casas. Ou porque eram doentes de situações verdadeiramente físicas, e/ou psíquicas. Assim acompanhei muitas vezes meu pai a, palácios e barracas.
Aí ter-se-à iniciado a minha formação política...

terça-feira, 13 de abril de 2010

Dia da Ascensão-Maio


No YouTube que acabei de colocar, há salas com trabalhos lindíssimos de pintura e escultura com incidência nos períodos renascentistas, vindos alguns do Gótico até ao séc XVIII. Mas já nem sei se há um que procurei sobre a "Ascensão" -a elevação de Cristo aos céus. Obras de beleza inexcedível.Na Histª da Arte, segundo o catolicismo passam-se 40 dias após o Dia de Páscoa. O que significa que o Dia da Espiga será celebrado numa Quinta-Feira próxima de um dia do meio de Maio. Comecei a perceber que na minha casa e naquela vida de infância, celebrava-se com muita intensidade o outro lado da vida. Não o oposto ao sagrado, mas um sagrado ligado ao colectivo e à partilha. Porque à espiga éramos um grupo e, só não nos juntávamos todos na rua numa enorme mesa espiritual,para a ceia, porque nunca houve lembrança disso, nem sei. Sabe-se que estas situações eram festejadas até muito antes da Antiguidade Clássica, como ritual de agradecimento também aos céus, mas no sentido Kronos, (o do cronológico) pelo sucesso das ceifas e lavoura.
O mais engraçado eram as perguntas recorrentes sistematizadas de ano para ano e os seus significados: o que é que quer dizer A Papoila? e nós dizíamos-a papoila quer dizer:amor, A Espiga?-quer dizer: Pão. O Malmequer? quer dizer:oiro. O Alecrim? Saúde. E a Oliveira? Azeite e Paz. Saber tudo isto era um consolo, igual ao de guardar a espiga durante tanto tempo cheia de pó. Mas sempre a apreciei, mesmo assim.

Galería de la Academia. Florencia.

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sábado, 10 de abril de 2010

Dia da Espiga

Aproxima-se o dia da espiga e, ninguém conhece o mito.
Hoje vendem-se as espigas murchas a nem sei quantos euros, nas estações de Metro, de autocarro e centros de predadores de nostalgias. Talvez não seja possível lembrar-me exactamente deste dia. Mas está marcado "Quinta-feira de Espiga" era um dia lindíssimo porque cheirava a herbários, herbários secos e erbários húmidos. Alguém protector da minha família pôs-me um lenço na cabeça por causa do vento e do descampado, espaço aberto, ilimitado do meu campo de papoilas na cidade.Havia uma outra pessoa que ía sempre connosco. Era a Cilinha que também cheirava a campo e a lençóis lavados; uma pessoa só, e com cara de submissão. Ficava sempre contente por ela ir connosco, porque pelo menos nesse dia ela dever-se-ía sentir um pouco mais liberta ao ar e ao vento.Nesse dia também jantava connosco; um ritual quase efémero, mas de uma grande alegria para mim. Quase um segredo de contentamento. Ela partiu há muitos anos para o Brasil e nunca mais soubémos dela; era demasiado discreta,incógnita,anónima,sem amores, nem encantos. Olhos muito ao fundo das lentes, coisas que sempre me causaram fascínio e curiosidade, porque nessa altura, se assim acontecia poderia ser devido ao facto da sua "inteligência bibliotecária". E infelizmente nada disso se tratava, nem trata ainda hoje. Quem me dera saber da Cilinha e ir à espiga com ela este ano. Só que não sabia bem aonde?

sexta-feira, 9 de abril de 2010

A cidade...era um imenso campo...e vice/versa

Lembraste daquele livrinho
(muita gente tinha a mania que tinha sido feito por mim)

:-«A minha casa de madeira feita de pedra»?

Pois bem...a minha cidade era feita de pequenas aldeias.
Para aí há um ano em Fevereiro também dialoguei sobre isso aqui.
Com fotografias que vais gostar em S. André de Nexe, no mar Cantábrico.
O nosso diálogo andava nestes contornos: o que seria +difícil? Nascer, viver ou morrer?

quinta-feira, 8 de abril de 2010

A escada de Jacob


a morte

As anunciações das mortes talvez sejam sempre mais conflituosas, do que as do nascimento, porque as letras que lhe juntamos como alfabeto de incógnita são transformadoras, levam-nos rápidamente a caminhadas desconhecidas.
Onde eu morava já havia também o suicídio, assunto como a poeira dos caminhos. Ninguém queria falar, mas o pó levantava-se indelével...
O meu maior medo era sempre o de encontrar a vítima pendurada em qualquer árvore; e, das árvores onde isso mais fácilmente acontecia eram as Oliveiras. Árvores muito harmoniosas, vindo da Síria, tão resilientes, adaptáveis, perenes, talvez pela sua beleza, misticismo dádiva de luz póstuma se ofereciam àquela viagem secular.
Secularidade, se o será?...
Ainda observo ambas as situações com a mesma dignidade. O emaranhado espiral dos troncos da árvore e o do tronco da pessoa. Tanta pertença, tanta fé e tão ousado destino, tão breve e tão efémero. No trabalho de Blake, sente-se essa inquietação transcendental e questinamento sobre o passamento.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

A Cerca de Tibães e o teu Cavalo Ricardo

As histórias que as vidas de uns, nos remetem para a dos outros...
Ontem qualquer coisa remexia nas minhas memórias enquanto te lia, em Curitiba.
Apenas tinha S. Martinho e nada mais. Acordei felizmente a pensar em Tibães. Há anos que lá estive e há outros tantos que não vou lá...Acabo agora de aderir ao Blog e está lindo com indução para Google Earth e bird-view. Apenas faltam as vivências e parte dos sentidos enquanto a oportunidade de os vivenciarmos não nos permite a ida. Mas já lá passei alguns momentos antes da reabilitação encantatórios e uma deles sozinha. O Mosteiro encontrava-se ainda num abandono, de forma ocupada por mistérios, como nos despojos das despedidas onde se deixam rastos de vida para trás. Um cavalo branco que pastava indiferente, nu de arreios e quaisquer adjectivos;restos imemoriais de ervas medicinais num lugar acolhedor de pequenos claustros com uma grande mesa de pedra indicada a transformações alquímicas e vazios, espaços vazios... Um espólio de riquezas culturais e patrimoniais ao longo de corredores com pavimentos de longas tábuas corridas de madeira de antigas árvores, sem limpeza, nem sujidade. E, apesar de ser um Mosteiro fundado pela Ordem Beneditina,encontrava-se repleto de pinturas de grandes dimensões que nos conduziam a um altar Barroco. Enquanto passeava tranquilamente como se apenas o cavalo branco me tivesse permitido a entrada sem bilhete e sem idade, ou identidade, apareceu-me um rapaz enorme, adolescente talvez, de longos membros, lascado no granito do lugar, e embebido de várias eras, vindo sabe-se lá de onde, mas também do séc.XI como o Mosteiro e todos nós. Habituada a lidações com estes comportamentos de personalidade interrogativa, iniciei o percurso verbal indubitável, das belezas do lugar; preenchendo-o também a ele dos certificados da sorte de ali viver. Certa, mas na dúvida, perguntei-lhe se sabia a quem pertenciam aqueles quadros? Melhor, quem os teria pintado? Com uma vénia excedente sobre mim, curvando o corpo imenso, ele respondeu:-"Sei, mas desculpe-me, não lhe posso dizer!"
Há professores, drs, mestres assim;-que nos fazem procurar, pensar e inclusivamente pensar sobre o que os levará a serem assim? Se não sabem mesmo? Ou se tiveram pais?! Ou quem os abandonou-para nos deixarem às más sortes...
Com este rapaz porém, a sensação dele ser pertença daquelas paredes, daquele cavalo, dos dourados do barroco póstumo, dos longos corredores que rangiam não me deixavam dúvidas de que ele conhecia tudo, e nada me poderia contar. Não era mais um papagaio intelectual.Era uma criatura de deus igual ao "Escangalhado" da minha infância,inocente e sujo/limpo do cavalo e do estábulo, da pureza das águas que corriam lá fora até ao lago, ao contrário do padre que se passeava na minha terra sem eira nem beira, sempre no desejo de uma esmolinha para a sua auto-promoção. Que será feito destes nossos inocentes e dos seus cavalos? (No próximo dia 11 há lá cogumelos, quem me dera lá ir...)

terça-feira, 6 de abril de 2010

a igreja e tudo quanto girava à sua volta

... havia no padre da igreja um certo assédio quando encontrava meu pai. Temia aqueles encontros. Sabia da réplica e da resposta. Nós, os três irmãos, não éramos baptizados e isso era uma espécie de exclusão social naquele tempo. Os padres diziam-se, como ainda se dizem, franciscanos e andavam de longas vestes castanhas, atados na cintura por um cordão branco com um nó que deixava cair as duas pontas até à altura das ancas. Especialmente este padre que emaranhava o meu pai de questões inimagináveis causava-me repulsa. Tinha uma certa tendência de nos ofertar a mão para que fosse beijada e essa pele que via as minhas amigas beijar dava-me náuseas. Outro deserto inconsciente estava a desenvolver-se à minha volta. Um deserto, nas diferenças culturais. Das meninas que frequentavam a catequese enquanto tomava chá com minha avó e outras amigas dela. Ignorava sempre o que se passava nas cabeças das outras meninas mas tinha alguns vagos ciúmes dos santinhos com as adorações das santas mártires virgens com os olhos piedosos revirados ao céu raiado, nuvens de onde saiam, raios solares entre nuvens negras; uma coisa espectacular. Imagens recriadas através do Simbolismo e com fundamentos na santa Brígida da Suécia. Contos apócrifos do séc.XII, e muito credíveis até à nossa vanguarda mais secreta pela beleza da mulher loira de olhos azuis piedosa e temerosa às tempestades que qualquer santo ou deus enviasse, fossem elas tsunami, terramotos ou quaisquer que fossem. Uma virgindade inquestionável, uma alta fidelidade como hoje já nem em estereofonia existe.
Mas entre isto e o os meus chás, penso sem dúvida nenhuma que gostava mais das toalhas de renda e das chávenas de chá azuis do mesmo modo azul do céu, não bem igual ao azul do céu de que todos falam, mas um azulado plúmbeo com uma risca prateada junto às bordas. O bule e o açucareiro também eram especiais, nas suas formas de sólidos geométricos com seis faces abauladas, que se sorriam sempre para mim mesmo sem olhares lânguidos. Riam-se, riam-se, às vezes às gargalhadas e decerto tudo isto foi mais divertido e religioso do que as conversas míticas dos caminhos difíceis e sinuosos que vão dar ao paraíso e das fáceis que iam dar ao inferno. Assim eram uns cadernos de ilustrações duvidosas que as outras meninas me mostravam. De novo o meu paraíso idílico de solidão dunar ou arbóreo onde pousava como os pássaros de árvore em árvore, ou onde deixava pegadas na areia antes que deus e o diabo me perseguissem, tinha o seu início. Até à morte meu pai resistiu à malícia do padre, sem nos baptizar. Desconheço a dimensão do seu desgosto ou tristeza quando antes de se casar, um dos meus irmãos teve de fazê-lo para que o casamento fosse na igreja do nosso território de nascimento.
Minha mãe tinha uma especial adoração pelo cristo de que falei ontem por causa da cor roxa da sua fatiota, igual à dos amores-perfeitos. Mas a sua força anímica era tal que nunca percebi o tamanho desta identificação nela. Se teria sido mesmo com a intensidade da cor, se da dor da perda dos seus seis irmãos, ainda pequeninos, do seu pai muito novo e da sua mãe ainda comigo dentro dela. O vermelho e o azul são um grande casamento também entre o feminino e o masculino. Entre o grande medo, raiva e dor e a imensidão da paz e de tudo que traz alguma espiritualidade e segurança. Sem grandes paixões gosto também do roxo, mas na infância tinha-lhe algum respeito e transmitia-me um forte sentimento de peso. Preferia as cores separadas; e apenas a vivi quando a aprendi. Misturando-a. Talvez seja mesmo a melhor forma de se aprender qualquer coisa, se não mesmo tudo.



segunda-feira, 5 de abril de 2010

Páscoa-photos de Josef Sudek

A Páscoa, um mistério...
esta temperatura no nosso
pensamento, epiderme dos tempos, uma nebulosa distanciadamente proxémica.
O catolicismo desigual:os que se dizem católicos, aos que praticam e o dos que sentem. Os artistas sempre representaram as figuras sagradas com ar enigmático, torturado, triste amorfo ou mutilado. Ainda assexuados, ou efeminados. Um pudor na execuçao do punir e/ou mesmo a sexualidade sem vida; castrada, desvirtuada e obsessiva e tristemente frustrada- daí óbvia e patológimente longínqua do ser amado e amante.
Na terra da minha infância, dizia também meu pai que existiam tantas capelas e igrejas como tabernas. Mais tarde isto sempre me fez lembrar os:Carmina Burana,na sua expressão musical mais sagrada e profana e só hoje sei da sua marginalidade e função em contestação aos dogmas revelados e me apercebo da minha paixão incondicional mal chegaram atravé do long-play a Portugal. Mas, então na igreja matriz há uma figura quase à escala natural, certamente realizada por um santeiro anónimo, ao qual resolveram vestir de um roxo(desde que o conheço) que esteve há relativamente pouco tempo na moda. Sempre fui à igreja às escondidas e a situação lúdica da quaresma, embora repleta de mistérios era para mim igual a todos os outros; sendo que o mais perfeito era o da Primavera e todo este rebentamento contido durante tanto tempo dentro da madeira, secreto, à espera da explosão das folhas, flores, cores e matérias criadoras! Na igreja serviam-se igualmente deste milagre, usando as flores, para a tristeza e para a alegria.
O cristo continuava de joelho no chão naquela magoada tentativa de se levantar sem que ninguém o ajudasse; com a pesada cruz negra às costas. Vestes largas naquela mistura intensa do vermelho com o azul e coroado de espinhos que o ensanguentavam: espectáculo que um dia talvez possa vir a ser considerado de abuso visual e não permitido a crianças. Para mim era uma violência olhá-lo e compreendo cada vez melhor o desagrado de não gostarem que frequentasse aqueles lugares. Uma face doente pugnava misericórdia a todos. E continua a implorar, quieto exausto no mesmo lugar, com tantas gerações que já lhe passaram. As voltas medrosas e tímidas à sua volta, hoje fazem-me analisar outros significados, embora me deixem a mesma inquietação. Tenho observado cristos lindíssimos. Outros horrendos; todos fruto da invenção criativa dos homens. De Giotto aos nossos dias o dicionário não se fecha porque pode ser pecado, ou cair-se em pecado. Neste folhear há trabalhos louváveis de artistas dedicados, mas sempre a olhar modelos em desespero e sofrimento. Ainda hoje, se por qualquer motivo tenho de ladear aquele cristo, volto ao início dos meus desertos e inquietações fundamentais.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

A Mão de bater à Porta

...estas eram as misteriosas mãos. Mãos sem mãos que nós gostávamos de tocar como mãos. Estas eram pesadas. Pesadas contrariamente à fina camada de pó de arroz que as senhoras usavam e a quem muitas vezes tínhamos de dar um beijinho sobre uma renda de um chapéu que descia até ao nariz ou podia cobrir toda a face. Nem por uma, nem por outra situação sentia grande apreciação. Na primeira pelo peso, um peso extra, a segunda por uma segunda epiderme que me parecia falsa embora houvesse um registo perfumado de qualquer semelhança a flor ou tentativa de longínquos mistérios de olfactos orientais.
A Mão sempre me lembrou um outro jogo: «o da mão morta, mão morta vai bater àquela porta» porque sempre tive medo de deixar cair a mão no ferro, pelo barulho que fazia. Também podia cair no chão e isso significaria um grande desastre. Estas mãos e estas faces estariam igualmente relacionadas com passos. Os passos de quem se aproximava da porta e da pergunta: quem é? O que deseja?
A senhora não está, já vai, ou já vou. Muitos verbos, muitas interjeições e advérbios de lugar! Agora não posso atender. Venha mais tarde! E também o silêncio, a ausência de som a assemelhar-se à postura da mão; quieta, clássica, não sem indiferença a manter um significado em qualquer porta. E uma porta sempre foi uma fronteira, um esbarrar para um salto de um outro universo. A porta e o passo. Dá-me licença, posso entrar. Ou também o silencio do simples abraço