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terça-feira, 6 de abril de 2010

a igreja e tudo quanto girava à sua volta

... havia no padre da igreja um certo assédio quando encontrava meu pai. Temia aqueles encontros. Sabia da réplica e da resposta. Nós, os três irmãos, não éramos baptizados e isso era uma espécie de exclusão social naquele tempo. Os padres diziam-se, como ainda se dizem, franciscanos e andavam de longas vestes castanhas, atados na cintura por um cordão branco com um nó que deixava cair as duas pontas até à altura das ancas. Especialmente este padre que emaranhava o meu pai de questões inimagináveis causava-me repulsa. Tinha uma certa tendência de nos ofertar a mão para que fosse beijada e essa pele que via as minhas amigas beijar dava-me náuseas. Outro deserto inconsciente estava a desenvolver-se à minha volta. Um deserto, nas diferenças culturais. Das meninas que frequentavam a catequese enquanto tomava chá com minha avó e outras amigas dela. Ignorava sempre o que se passava nas cabeças das outras meninas mas tinha alguns vagos ciúmes dos santinhos com as adorações das santas mártires virgens com os olhos piedosos revirados ao céu raiado, nuvens de onde saiam, raios solares entre nuvens negras; uma coisa espectacular. Imagens recriadas através do Simbolismo e com fundamentos na santa Brígida da Suécia. Contos apócrifos do séc.XII, e muito credíveis até à nossa vanguarda mais secreta pela beleza da mulher loira de olhos azuis piedosa e temerosa às tempestades que qualquer santo ou deus enviasse, fossem elas tsunami, terramotos ou quaisquer que fossem. Uma virgindade inquestionável, uma alta fidelidade como hoje já nem em estereofonia existe.
Mas entre isto e o os meus chás, penso sem dúvida nenhuma que gostava mais das toalhas de renda e das chávenas de chá azuis do mesmo modo azul do céu, não bem igual ao azul do céu de que todos falam, mas um azulado plúmbeo com uma risca prateada junto às bordas. O bule e o açucareiro também eram especiais, nas suas formas de sólidos geométricos com seis faces abauladas, que se sorriam sempre para mim mesmo sem olhares lânguidos. Riam-se, riam-se, às vezes às gargalhadas e decerto tudo isto foi mais divertido e religioso do que as conversas míticas dos caminhos difíceis e sinuosos que vão dar ao paraíso e das fáceis que iam dar ao inferno. Assim eram uns cadernos de ilustrações duvidosas que as outras meninas me mostravam. De novo o meu paraíso idílico de solidão dunar ou arbóreo onde pousava como os pássaros de árvore em árvore, ou onde deixava pegadas na areia antes que deus e o diabo me perseguissem, tinha o seu início. Até à morte meu pai resistiu à malícia do padre, sem nos baptizar. Desconheço a dimensão do seu desgosto ou tristeza quando antes de se casar, um dos meus irmãos teve de fazê-lo para que o casamento fosse na igreja do nosso território de nascimento.
Minha mãe tinha uma especial adoração pelo cristo de que falei ontem por causa da cor roxa da sua fatiota, igual à dos amores-perfeitos. Mas a sua força anímica era tal que nunca percebi o tamanho desta identificação nela. Se teria sido mesmo com a intensidade da cor, se da dor da perda dos seus seis irmãos, ainda pequeninos, do seu pai muito novo e da sua mãe ainda comigo dentro dela. O vermelho e o azul são um grande casamento também entre o feminino e o masculino. Entre o grande medo, raiva e dor e a imensidão da paz e de tudo que traz alguma espiritualidade e segurança. Sem grandes paixões gosto também do roxo, mas na infância tinha-lhe algum respeito e transmitia-me um forte sentimento de peso. Preferia as cores separadas; e apenas a vivi quando a aprendi. Misturando-a. Talvez seja mesmo a melhor forma de se aprender qualquer coisa, se não mesmo tudo.



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