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sexta-feira, 16 de abril de 2010

O V e r s o

O Verso, segundo me ensinaram é o acto de virar, voltar, passar para o outro lado, virar a terra-cavar, lavrar. Palavra com raiz no latim. Vira para a outra linha, para que o verso aconteça.
Na Oficina de meu pai, não havia piano. Mas, também havia o verso e o reverso; o espelho grande e o sofá eram suficientes para as músicas que ouvia e também dois candeeiros em porcelana brancos, pendurados nas respectivas roldanas, por onde passavam os fios e num dos quais havia um peso em forma ogival que continha areia e equilibrava o prato coador ,protector de luz em forma cónica,com projecção semelhante a uma tenda,ou a chapéu de palhaço rico. A meia luz que interessava ao trabalho abaixo do olhar sobre as duas grandes mesas.Luz que filtrava a poeira dos dias,a poalha da intensidade do labor. Uma luz que para mim era diferente de todas as outras luzes, porque transmitia o vapor dos barcos, dos comboios e de todas as viagens de tanta gente que por ali passava, outros objectos pertenciam também àquele concerto de acolhimentos e projectos imaginários futuros.Mas as réguas e os esquadros enormes eram um fascínio que determinava já futuros inimagináveis.
E, magia das magias era o facto de se virarem os fatos. Virar como o verso.Os clientes que gostavam de um certo fato iam virá-lo. Virar um fato era virá-lo do avesso. Mas como o avesso tinha muitas costuras e pó nos interstícios havia as lâminas ou os canivetes para os limpar nessas rugas vincadas pelo passar a ferro. O que era uma paz de ver. Depois a lavagem, e posteriormente o engomar e reparar o outro lado do pano, tecido, ou o que quer que fosse. Penso agora, que como isto acontecia com qualquer classe social, esta questão devia dizer respeito mais à pele, ao gosto ergonómico e talvez, fantasiemos a algum equilíbrio ecológico e economicista. O fato após reabilitado, parecia as casas quando de novo se pintam e de novo nos refrescam a alma. Esta história foi-se diluindo ao longo dos tempos como qualquer acto impossível. Nessa mesma época já se ouvia dizer que na América, se calçavam as meias e deitavam fora depois de rôtas. A palavra "passajar" não sei sei se ainda existe. Mas era um tear muito pequenino que apreciava e resultava. Cerzir, era então ainda pior,(ou melhor, mais precioso).
Cerzideira era uma mulher (penso que não existiam homens, para tal)que disfarçava qualquer "tragédia" num bom tecido;como quem diz:"no melhor pano cai a nódoa". Naquela Oficina passavam-se muitas histórias engraçadas, e era um lugar onde me sentia bem. Se lá iam estrangeiros, meu pai dizia sempre que eles tinham outro cheiro; e sempre quis decifrar este enigma. Sim, as senhoras gostavam muito dos fatos (tailleurs)lá concepcionádos; davam-lhe elegancia e eu não só gostava de as ver como também da diferente cerimónia da prova do fato, que tinha uma intimidade diferente.Dos cheiros contarei um dia. De seguida terei de contar as viagens dos pirilampos...

2 comentários:

magda disse...

Cerzir é a profissão maluca de algumas fulanas, que passaram a vida a cerzir a vida dos outros para que ela se tornasse minimamente suportavel. Pq há vidas com buracos tão grandes que nunca se pode parar de cerzir. Se conseguirmos dar essa capacidade às pessoas, fazemos um serviço, posso chamar publico?

ester disse...

Sim. Como a espécie de luminosidade que os pirilampos nos davam nos escuros caminhos de que hei-de falar.
A propósito de serviços públicos temos agora um dicionário a corrigir e colocar "red underlines" em palavras antigas e outras. Será um serviço público, mesmo? Ou particular d'alguém em especial. Também não podemos usar palavras no plural, nem diminutivos. Mas ainda a propósito do cerzir, era um consolo.