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sexta-feira, 19 de março de 2010

os ninhos de andorinhas no meu sotão



O verão ou qualquer aproximação a ele era uma situação carinhosa, como o é tudo que se aproxima morno como as andorinhas que nos passam rentes a roçar o imaginável e inimaginável, desde o centro da terra aos confins do universo. Delas também nunca sabemos o rumo certo. Desde os seus desequilíbrios nos fios quando todas se agrupam para partirem; momento comovente; de um enternecimento que se poderia guardar em pequeninas caixinhas e oferecer no Natal a quem mais gostássemos mesmo sem laçarotes. Apenas em papel de seda com um pouco de veludo onde se pudesse escrever:-aqui está a partida das andorinhas. Mesmo no Inverno deixavam-me ir para o sótão, mas a facilitação era mais comum nesta época de temperaturas já menos duvidosas e amenas.
E, como as andorinhas, no ar, investigações poéticas tinham o seu início naquele lugar. Talvez também ali se tivessem iniciado os meus primeiros ninhos da vida. Sei hoje cada vez mais com o dicionário aberto em palavras usadas e desusadas e n'outras enciclopédias mais elaboradas que era ali, naquele lugar que o meu cérebro funcionava livre como o pensamento numa névoa de pó dourado com a luz zenital que a raridade de outros lugares não podia construir. Eram as traves grossas que sustentavam os tectos de madeira, as luzes impróprias porque eram raras e ofereciam perigos e aventuras, as pequenas janelas, que num ápice eram observatórios, e sobretudo os aracnídeos que já, tais Aracnes segundo profecia de Atena, se penduravam laboriosamente atentas a outros voadores. Oferta de mistérios e de uma investigada observação.
Às avezinhas podia observá-las do vidro empoeirado do ouro do pó ensoleirado, lugar da casa que ninguém visitou nunca. Lá acima eram lugares onde nunca se ía. Uma espécie de nunca se ir saber o que se pode pensar, ignorando isto e aquilo, dentro da nossa cabeça com a honestidade precisa e necessária. O sótão e a cabeça assemelham-se num certo ponto de vista antropómorfico. Ambos vivem lá em cima na casa construída; alicerçados para quase que, os mesmos fins. Normalmente de difícil subida. E, quase sempre perigosos de descer e/ou ser-se obrigado a fazê-lo cuidadosamente, com o perigo de cair, tropeçar e não ver bem o que se pisa.
Nem vos conto desta escada! Um malabarismo de subida e outro de descida.
Tive muitas vezes a leve esperança que se esquecessem de mim, por lá . De que se esquecessem de me lançarem a escada... Aquilo era uma espécie de barco. Outra maravilha.
Quando mais tarde vim a conhecer Saint Exupéry, nos livros já o conhecera antes ali. Numa espécie de nave, embalada num adormecimento acordado e atento. Os vidros de sílica das areias feitos de mil grãos já ali estavam.E ali estavam também os grandes Desertos.
Que vagos e pequeninos deixavam-me ver todas as andorinhas, aranhas e abelhas nas suas construções mais laboriosas e designadas pela perfeição geométrica, sem hesitação, sem que muitas no seu espaço livre me vissem. Ignorava aquele nome "observatório/laboratorial" e sempre fui tentando viver neste espaço discreto de ser e ter. Molduras velhas e retratos como recorrentemente se diz:-abandonados. Talvez estivessem no seu cemitério de pó. Do pó d'ouro que sempre admirei.
Um pó que os estimava como eu a eles. Havia também uma caixa. Uma caixa que apresentava apenas o rigor da forma baixa rectangular com uma tampa. Nada mais. Apenas uma caixa de cartão sem riquezas, ou luxos exteriores; embutidos como se diz. A técnica é citorsina ou entársia
aquilo que os artistas introduziam com minucíosos trabalhos. Esta era apenas a caixa de papelão de um azul claro igual ao do céu quando se diz que está "um lindo céu" e, depois...andavam lá paradas e a andar as andorinhas que todos conhecemos cá fora na rua. Um dia escolheram aquele sótão naquela minha terra e pelo telhado atravessaram a luz poisada na sílica e ficaram para toda a vida a viver naquela caixa; aquela caixa tinha lá dentro botões. Não sei se cada botão era melhor do que uma boneca. Raramente se tinha muitas bonecas. Na minha escola, naquele ensino primário, havia de facto uma menina que nem parecia igual às outras e que cada dia levava uns sapatos, o que quereria dizer que certamente também tinha uma boneca a todas as horas. Mas assim talvez ela nunca pudesse conversar sossegada e tranquila. Devia ter muito trabalho e algumas ficavam abandonadas. A minha caixa era do tamanho dos meus braços abertos. Às vezes grande e um pouco pesada. Pousava-a numa arca e nem sei onde me sentava.
Tinha uma urgência enorme de ver os botões. Espalha-los, virá-los e revirá-los. As luzes foscas e omissas davam-lhes cores de arco-íris e era disso que gostava. Com a tampa da caixa virada para cima. Voei com o Bartolomeu de Gusmão, com o ST Exupéry e sobretudo com as andorinhas que pensava que eram eternas.
Os abelhões pretos, tão pretos que eram azuis de corpo volumoso e asinhas brilhantes encantavam-me e, dali podia observá-los sem ouvir os gritos de ninguém, quando os vêm. Gostava deles com os seus trajectos e sonoridades. A serenidade das abelhas que voavam pelas telhas velhas e seguras. O seu pousar e saber o preciso querer de onde encontrar o néctar, coisa que naquela altura sabia lá eu o que era?... Sim este telhado como muitos da minha terra tinha flores e plantas.
O rei Nabuco soube o que fez quando mandou projectar os Jardins Suspensos da Babilónia; eles existem naturalmente, mas os homens paradoxalmente rejeitam o bem que lhes é fornecido pela natureza. É a ilusão do poder.
O tempo levou a minha caixa das andorinhas. Outros homens levaram as minhas andorinhas.
Contudo está tudo guardado cá dentro do meu sotão interno. Os botões acredito que foram para outras galácticas de tão bonitos que eram e, dali do alto não poderiam ter partido senão na vertical.


É a esperança (pensando na Pandora) que nos mantém.


















































































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