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terça-feira, 23 de março de 2010

o cheiro que as casas sustentavam

O cheiro das casas, das coisas, dos sótãos e dos sons sempre me pareceram feitos de cores. Mesmo o meu Tio Venceslau que era, ou ficou cego, tinha a certeza que me via; e era a única pessoa que deixava que me pressentisse o tamanho,a forma e a cor dos meus vestidos. Quando eu o via marcar os números de telefone que ele queria pensava que me estava a ensinar qualquer coisa. E claro que estava. Ele era muito alto e falava para o ar, era preciso ter muita atenção ao que ele dizia. Não sei bem porquê pensava que ele tinha uma quinta muito grande, onde se sentava num banco sobre um toldo, num modo árabe a olhar o horizonte dentro dele.
Sentava-me junto dele a tentar olhar para dentro e para fora, o longe e o perto enquanto via o fio fino que divide a terra do céu. E quando isso se via...mas tudo com uma intensidade de odores.
(chegaram desconhecidos e anónimos executores de tarefas urbanas, iniciando o fastidioso diálogo proverbial da minha terra não ter horizontes) ...
Esse tempo era simultâneamente estranho, porque nunca sabia bem a certeza dos casais, nem na família, nem muito menos fora dela. Casava uns tios com outros sem perceber bem quem eram uns e outros. De facto o campo era vasto, quase como um deserto e andávamos muito sem preocupações maiores, parece-me que os cheiros nos orientavam para os lugares e para as casas. Os primos também não necessitavam de maiores selecções eram amigos como os demais.
Mais tarde vim a fazer uma descoberta interessante quando já estava a "nadar" bem no russo dos livros; ou nos livros russos. Havia para além deste meu primo Venceslau mais um outro Maximiano, outra Virgínia outra Helena e estas já nada teriam a haver com a história que conto, se não fosse a possibilidade de me sentir num universo diferente, na vida que tinha de ser igual para todos no colectivo. Também havia o tio Artur que mal via o meu pai onde quer que fosse, que se encontrassem desatavam a jogar xadrez, como uma espécie de prolongado cumprimento. Parecia que tinham dentro das suas mãos grandes guardadas as peças iniciais como uma determinação modelável. E isto acontecia muito no nosso quintal debaixo da ginjeira. Era de novo o silêncio, um silêncio pensado introspectivo como as hastes frágeis das árvores que seguram silenciosamente toda esta explosão. Crisálidas que se abrem em borboletas e os nossos gatos aos saltos por cima das hortas; e, aquele jogo uma delícia.Mas jamais me atreveria a entrar dentro daquele puzzle de quadrados e guerra pacata de Reis, rainhas, cavalos torres e peões. Quase como eles, sentia algum gozo quando ouvia a palavra "check-mat", ainda hoje não sei se é assim que se escreve. Quando o meu pai estava sozinho jogava-o às vezes no jornal e eu ficava a considerar qualquer magia de um outro mundo. Todos nós com dicionário, estamos sempre longe do impossível e das vanguardas. Talvez um dia possamos começar a escrever-lhes, ou se não será isso que todos nós fazemos logo que eles partem e ficamos com tantas perguntas por lhes fazer? Mas como contar-lhes esta infinitude?
Havia na linguagem daquela era um antagonismo de fé reactiva à religião praticada no momento. Com distinções pouco claras mas seguramente nada fervorosas, visitar um espaço sagrado era um fenómeno puramente agnóstico e cultural; o que para mim me isolou sempre da maneira de estar do "outro". O ser-se democrata não teria o mesmo significado para todos, como hoje ainda não tem nem nunca irá ter.
Uma infidelização temporal que ressinto e pressinto, quase como a questão da salsa; com ou sem raiz!Tudo isto tinha uma intensidade olfactiva superior à que o Rei Mago trouxe como incenso purificador de e para todos os Meninos e sim, foi a construção vernácula de muitas casas feitas e realizadas com as mãos de muitos homens.



1 comentário:

magda disse...

O meu Titi também jogava xadrês com o meu pai.
Um dia, no Pinhal dos Eucaliptos, estiveram tanto tempo imóveis que um lagarto subiu pelo interior das calças do Titi que só deu por isso quando as unhas do bicho lhe chegaram à barriga. Nessa altura e claro, de forma absolutamente inesperada para quem lá estava, eu estava, o Titi desatou aos saltos e aos gritos e a despir as calças, o que foi um inesperado quase louco. Mas não, lá estava o bicho verde com o seu rabo comprido. Por acaso não sei se o Titi era do Sporting...