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domingo, 17 de outubro de 2010

O Silêncio



O silêncio em Bergman lembra-me as mãos entrapadas do Fausto.
O Fausto podia ser o Corcunda de NotreDame, mas era o homem que acartava água na minha terra que antes pertenceu à Freguesia de Santa Maria de Belém; o Fausto tinha aparência de miserável, mas pertencia às famílias financeiramente abonadas daquela zona. Uns muito ricos e outros muito pobres. Alguns, sem distinções pelo meio,-uma ponte indefenida de onde olhava muitas vezes as rendas, os espelhos e as sedas, e os outros rôtos. Rôtos de trapos e roupas resíduais com educados modos de pedir e esconder, ou de outro modo expôr inconscientemente a pedinchice ao chiquismo que assim aliviava os seus pecados através da algibeira um pouco menos pesada, ou de outra forma criava estratégia de fazer mais um fato novo na oficina de meu pai escolhendo novos pêlos de lã das ovelhas moyer ou outras que se teriam de esperar pelo caixeiro viajante para que as trouxessem de um lugar longe do qual já teria vindo de outro ainda mais longe.
O Fausto possuía mais do que trapos nas mãos e andrajos que envergonhavam toda a família. Empurrava um carrinho de madeira onde cabiam duas bilhas de alumínio as quais fornecia por parcos tostões a pessoas que não tinham água canalizada.
E, malabarismo cognitivo do Fausto era o daquele factor imemorial que sabia, não se sabe como, saber em que dia da semana se nasce fazendo umas contas que nós crianças ficávamos no pasmo d'algum feiticeiro de Oz. E eram vezes sem conta que fazíamos o pobre Fausto parar o seu carrinho de madeira para repetir as nossas datas de anos e as de quem mais houvesse para nosso encanto e fascínio mágico. Tudo isto era perpetuado num ritual de silêncio sem hostilidade. Fosse hoje o Fausto parar o carrinho naquelas ruas e usar a água naquela fonte?!O Fausto tinha tempo e todas as pessoas tinham tempo de esperar por aquela água, mesmo sem torneira a escorrer a água esbanjada como acontece hoje de qualquer modo, sem tempo e sem data.
O Fausto não pertencia a ninguém, nem sequer ao silêncio que se arrastava atrás dele. Pertencia apenas ao seu interior coberto da sua pele áspera e seca e esperava as perguntas às quais respondia, sem antes dar um pequeno aperto de mão apenas com as pontas dos dedos que lhe sobejavam das mãos entrapadas em panos brancos.
O sofrimento da criança e a sua solidão neste filme de Bergman lembra-me a rudeza e solidão do Fausto: os lençóis brancos-a mácula e a tristeza na violenta tristeza de perdas, sem aparentes linguagens significantes. O Fausto guardava sim, um sorriso triste, poder-se-ía dizer:- imbecíl,o que fazia dôr e mágoa. Ou que ainda me faz por tanto ser castigado nem sei se se sabe bem porquê? Tanta pergunta, tanta água acartada, tanto frio, tanto casaco em cima de casaco e sobretudo. Tanta água à chuva e à fonte. Tanta numeração naquele cérebro. Tanta conta feita e tanta mensagem de ídas e voltas à fonte num carrinho tão económico e ecológico.O Fausto não era de Goethe nem de Wagner. Era de todos e de ninguém. Mal soube da sua morte. Talvez por ali ande ainda e guarde como 'O pastor de rebanhos' alguma poesia do lugar. Uma vez que neste momento a miséria é outra, um retrato diferente, onde jamais o menino Jesus desceria à terra com uma máquina fotográfica.

2 comentários:

magda disse...

Conheci 2 Fautos, não por carregarem água mas por serem "calculadores de calendário", débeis eventualmente com psicoses deficitárias.
Um deles engasgava, tal uma máquina encravada, se se lhe perguntasse por um dia inexistente por ex 29, 30 ou 31 de Fevereiro.
Nos últimos 30 anos, não conheci nenhum.
Andaremos a fazer qq coisa para que não fiquem assim? Oxalá!

ester disse...

Este Fausto, talvez fosse um deles. Fazia ambas as coisas. Baixava o carro da água que tinha os 2 buracos para as bilhas devagarinho e com essa obsessão aguardava a pergunta. As abordagens que lhe faziam tinham a mm insistência, de onde deduzo que a repetição do que se diz hoje a mts níveis, dos que passam nas ruas e auto-estradas motas e outros meios embora já não tenham o 'slow-down', fazem-nos esperar em filas enormes onde os calendários estão calculados ao segundo Com 'néons' em placards verticais, e com programações intempestivas duma agressividade abraçada aos maiores desafios para ires para todos os lados e nenhum...No parlamento, então são dramáticos. Esses repetidos sinais calendarizados e arrastados. Oxalá não fossem.