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quinta-feira, 27 de maio de 2010

criadas

Após a morte de meu avô, rapaz muito novo, minha avó casou de novo. Sabe-se, debaixo do ponto de vista económico, por necessidade.
Quanto a este fenómeno, penso que há um critério suicida nestes acontecimentos.
Uma espécie de auto-mutilação que desejaria, mesmo que séculos mais tarde viessem a ser anulados. Neste momento da nossa contemporaneidade, embora o vanguardismo feminino tivesse sofrido um avanço a mulher contínua a servir, se não o homem, a casa e filhos e pais e demais família que seja ascendente e descendente. Atitude de uma força genética extraordinária e quase sedutora, naquilo que chamaria de suicida, pela atracção imposta. Nasci então com um avô emprestado. Figura presente, como uma espécie de S.José no presépio. Mas havia qualquer ingenuidade no nosso relacionamento que me fazia não lhe sentir o poder nem a autoridade devidas. Esse sentimento talvez fosse traduzido pela minha avó numa insconsciência mais profunda do que linear. E penso também que a ausência de amor entre ambos, tivesse acelerado todo o processo de travagem muscular da mãe de meu pai. Transgredindo a barreira da decência do seu harmonioso viver. Eu gostava muito dela e da sua paz no passear devagar.
Um peso no seu olhar e a precipitação estrutural de divagações do pensamento, procuras desencontradas, fizeram com que ela paralisasse no tempo. Tudo lhe escorregava das mãos. E o verbo querer, ausentou-se do seu dicionário.
Com as quedas, as perdas e os esquecimentos, a filha conseguiu uma criada. Criada era a adolescente/mulher que vinha de longe de combóio, para ficar em Lisboa e para ser criada por alguém, quase uma espécie de adopção com trocas,devido ao seu desfavorecimento social de berço pobre . Pobre e conveniente inacessibilidade aos academismo de então. Claro que nesta fragilidade havia nelas uma sensualidade como resíduo campestre que abria as suas cores como flores. Postura repleta de diferentes coloridos remetendo ao sentido bucólico e nostálgico este seu modo serviçal e ser modelada e ensinada. Poderia portanto ganhar menos do que o mínimo porque lhe era dada a cama para dormir e a mesa para comer para além do polimento das boas maneiras e modos; mesmo que na cozinha. Tinham normalmente uma farda que eu invejava. Ora preta com folhos brancos e rendas sobre o preto, ou pintas sobre azuis, normalmente claros. Havia também as de riscas. Mas tinham quase sempre uma gola branca que contornava o pescoço, a qual deveria manter-se limpa. Quase todas as criadas cheiravam a potassa ou a sabão. Cheiravam também aos recados e aos magálas (soldados) às papoilas por este tempo, em que os pássaros fazem os ninhos. Sensualidade sedutora que muitas vezes ajudava a iniciação sexual dos mais jovens da casa. Ou não se chamassem elas criadas de servir. Íam servindo para tudo. Há quem ainda hoje se sirva delas. Situação que se comunga como um pacto. Pacto pago à parte, como horas extraordinarias. Só que hoje não vêm de campos do perto; das Beiras, nem do Norte, nem do Sul do nosso país. Normalmente chegam sem Norte, nem do Norte. Vêm do Oeste, de Este, Leste e do Sul do Globo Terrestre. Já não andam com farda e só algumas pessoas as podem ter, servindo-se delas e usufruindo por pagamentos ainda desiguais, esses trabalhos domésticos e domesticados, que agora apenas se denominam "domésticos".Assisti de pequenina a olhá-las desse modo, diferente. E a ter de me calar. E a ler livros e a pintar para me distrair. A injustiça havia-a de muitos modos e jeitos; tão igual a sempre. Vivo num país pobre, e n'outros lugares por onde andei, poucos existem hoje a possuir poderes económicos para sustentarem estas situações. Falo do Norte da Europa, onde é proibido também prender pássaros em gaiolas. Minha avó pareceu-me sempre atingir esse destino de pássaro fechado na gaiola, com uma criada para lhe limpar as grades e ir mudando a água e dando as sementes e as espigas das couves. Talvez odiasse. Aquela criada. Continuou ainda a servir e ser servida na mesma casa, mesmo depois da morte de minha avó. Quando a vejo hoje mais velha do que eu e muito mais desempoeirada, com casa por cá e vivenda na terra de onde veio, penso nas voltas que a vida deu. Ela nunca deveria ter lido um livro e parece-me que tem aquilo a que se chamava a 4ª classe. Mas isso também eu tinha e tenho, se é que ainda vale e ainda terei?!.. É a vida, dizem alguns. Ela compra o ramo de espiga, aos homens e mulheres que a vendem na rua. Uma das nossas diferenças. Dever-se-iam seguir imensas.

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