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quinta-feira, 4 de março de 2010

Os Lugares onde nasci...e vivi.

... era um pequeno mundo de fadas e algumas bruxas voadoras...estas, porém apenas à noite voavam com suas asinhas pequenas e frágeis. Dormiam junto dos palácios das quintas, onde estavam guardados os grandes fardos de palha junto dos cavalos e éguas, que nas madrugadas antes das brumas do amanhecer tinham de iniciar as suas tarefas, mas durante a noite procuravam os insectos que incomodavam os quadrúpedes, como as vacas que nos davam leite fresco. Depois quando os animais deixavam os sítios aquecidos elas adormeciam nesses confortáveis fardos de feno.
Quem distribuía esse leite era o Sr. Gabriel com uma bilha grande de latão que era muito semelhante ao homem de lata do "Feitiçeiro de Oz". Não havia leite com mais nada! O leite era apenas leite; com muita nata. Quando se fervia por causa dos micróbios, ele emergia de um fervedor de uma outra lata, mais fina e enquanto arrefecia a nata era quase manteiga. As manhãs tinham um sossêgo de musgo e de quintas e quintais arrumados. Talvez existissem 4 ou 5 carros que não metiam medo a ninguém e quando passavam, paravam para se dizer bom dia, ou adeus, como está?...
As crianças eram fadas pequeninas, que tinham borboletas e joaninhas. Íam e vinham da escola como se tudo fossem caminhos sem dono. À noite para além das bruxinhas havia também pirilampos. Muitos pirilampos como estrêlas pequenas que caíam do céu. E como uma estrelinha que havia dentro da igreja no tempo de Natal. Alguém a sabia fazer subir e descer, sem ser por acaso. Mas parecia mesmo. Havia contudo um mecanismo para além do mistério do presépio (que quer dizer mangedoura) que intrigava, não apenas as crianças, como também todos à volta.
A igreja no seu próprio estilo austero de romanico/barroco tardio e militar assustava-me um pouco pela escala dimensional. Mas o que mais gostávamos era do jardim da Luz que era igualmente de todos e tinha cisnes que sempre pensei que apenas neste pequeno universo existissem.
Quando mais tarde estudei geografia e li o "Nils Holgersson" fiquei a saber as distâncias também dos mundos que nos vâo rodeando. Havia ainda e porém, quintas com tanques e lagos e árvores repletas de frutas e verduras e flores quase dadas. Era uma terra ecológica, mas disso nem se falava. As roupas eram transformadas e recicladas, sem que disso nada nem ninguém se apercebesse. Se havia uma Senhora que fazia camisas de noite, outra cosia botões, ou tinha uma máquinazinha para os fazer. As terras, algumas tinham ténues divisões e nunca me apercebi de quem eram as casas ou as quintas. Crianças, adultos, avós e bisavós, tios e primos eram bastante semelhantes.
Um tangível relacionamento.
A guarda nacional républicana passava de noite a cavalo. Uma coisa transgressora numa população de paz e serenidade.
E os cascos dos cavalos nas pedras cúbicas de granito, faziam uma aterradora sonoridade. Era certa a hora de ir para a cama e penso que até os pirilampos fugiam. Só as bruxas gozavam encavalitando-se nas caudas bem penteadas dos cavalos. O mundo era pequeno, mas havia um mecanismo especial como a corrente que fazia subir e descer a estrelinha do Natal. Era o "Elétrico-o 13"que esperávamos muito tempo por ele. Mas íamos muitas vezes à Baixa.A Baixa era a distância deste lugar até às Praças maiores de Lisboa e a planta urbana Pombalina. Recta, plana, organizada, para a esquerda e direita com tenacidade rígida da régua e esquadro a 45º,plena reacção a qualquer contorno arábico.O Électrico era uma espécie de cordão umbilical que ligava esta comunidade ao Jardim Zoológico, a S. Sebastião, ao Marquês de Pombal, descendo devagarinho a avenida da Liberdade até aos Restauradores. Quem quisesse podia ir a pé apanhar o Cacilheiro ao Terreiro do Paço, pela rua Augusta, do Ouro, ou da Prata. E, se tivesse sorte podia ver golfinhos e água limpa no rio Tejo. A espera do Eléctrico à noite nos Restauradores, foi das coisas mais lindas da minha Infância. Os anúncios da Singer com a máquina de costura, a apagar e a acender, o homem da capa do licor Sandman apaixonavam-me como uma decisão de casar um dia com um homem com aquele perfil tão alto e distinto como o Castelo de S. Jorge. Os telhados pareciam-me objectos mágicos como tapetes voadores e, seria dali que iria para casa de volta. Na infância a importância das coisas não está nelas. Mas muito mais na consciência e no pensamento que delas se tem. Da beleza que lhes encontramos e do seu universo interno inventivo e criativo. Essas cores dançavam para mim e eu inventava filmes e danças com elas.
Tinhamos uns Eléctricos no Verão, apenas com a parte da frente e a parte traseira. Uns toldos às riscas que protegiam do Sol, aos lados. Os bancos acompanhavam toda a largura e eram paralelos e com distancias equitativas. Havia pessoas como algumas bruxas: discutiam porque queriam os estores para cima e outras porque os queriam para baixo.
Para se sair, apenas para a rua se podia fazê-lo. Muitas vezes no Inverno porque assim eram as organizações, esses Eléctricos continuavam a existir, à falta de mais eléctricos e de outras ordens sociais de consolo e protecção para as pessoas. Mas enchiam, enchiam como balões a rebentarem. Eu achava graça àquilo porque sempre me senti segura aqui neste lugar, numa grande família, mas chovia que se fartava em cima de todos e aí todos queriam ir no meio do Eléctrico.
Imensamente desolada e distante, sinto-me banida deste irreconhecível planeamento. Do eu,da envolvência do lugar, da terra, e a família que se reduz, como uma árvore sem folhas.As andorinhas nunca mais voltaram. Adorava o seu retorno contornado de vôos razantes. Outras ordens vieram! Construíram uma malha urbana desumanizada, sem pensamento, sem traço e sem risco. As últimas características vão ruir agora brevemente, onde deverá estar um cemitério da minha vida com as crisálidas, os ninhos, os bichos todos com que andei e passeei. Há 1 ou 2 árvores; que irão dizer:importantes, e preparam-se para dizer que se vai remodelar o Jardim da Luz. Chamam nomes de pessoas às coisas, como que a querer identificar e dignificar o vazio, os espaços dos animais grandes e pequeninos. Até a miraculosa estrela do presépio e o presépio desapareceram. Os Fransciscanos descalços, que andavam com umas lindíssimas sandálias apenas com uma tira castanha a atravessar o pé e o circulo com a fivela a atar o calcanhar desapareceu. Existem quintas com altos muros. Que apenas se vêm no "google maps ou earth". Árvores lindíssimas, que ora vem 1 e diz que é alérgico, ora vem outro e corta porque vou fazer outro prédio. Há árvores onde dormiam os pavões e um Dragoeiro onde brincavamos tardes a fio debaixo dele. Sabia eu lá dos nomes das árvores. Éramos d e um equilíbrio e economia ecológica anónima como os artistas desconhecidos da antiguidade. Quando a castração do trigo, dos campos e das árvores se iniciou, também tive de partir para outros mundos maiores, uns mais sábios, outros menos. Dimensões díspares. Quando voltei reparei na ausência dos pirilampos, das joaninhas, borboletas e flores, das quintas e azinhagas. Os lugares estavam sem eles próprios. Como se se tivessem despido e vazado corpos e formas. A linha do horizonte histérica de contornos cúbicos como a antiga calçada dos cavalos de gente e ruído acústico, uma sonoridade absurda. Gente ansiosa, que passa, pouco nossa, distante e vaidosa, rasgando e abrindo feridas na terra, sem tom, nem som.
Ester
(amanhã conto mais)

2 comentários:

magda disse...

Amanhã nem sempre quer dizer o dia a seguir a hoje.
Mas estou à espera.

ester disse...

...é verdade; e o ontem esqueci-me de o viver; mas já agora, ainda nem sei onde estou, nem quem sou.
O frio e o fogo misturam-se em cinzas voadoras instaladas nas nuvens, negras, brancas, cinzentas de todas as formas.
Talvez + logo, seja há muitos anos.